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A saúde dos brasileiros é motivo de negociação por
baixo dos panos. As propinas começam em 10% e são pagas, claro, com o dinheiro
de seus impostos.Em 2012, o Governo Federal aplicou quase R$ 38 bilhões na
saúde dos municípios brasileiros. Só para o atendimento básico, feito nos
postos de saúde da família, serão R$ 16 bilhões até o fim deste ano.Os valores
entram direto nas contas das prefeituras. E a maioria dos municípios prefere
usar essa verba na contratação de cooperativas médicas e organizações sociais,
para que estas se encarreguem do serviço de saúde.
O Fantástico percorreu regiões do interior do Brasil para investigar se
esse dinheiro está sendo bem gasto e se a população é atendida como merece.
Repórter: É difícil conseguir atendimento lá no posto?
Damiana: É difícil.
Repórter: A senhora já tentou muitas vezes?
Damiana: Umas quatro vezes e não consegui.
Damiana: É difícil.
Repórter: A senhora já tentou muitas vezes?
Damiana: Umas quatro vezes e não consegui.
Damiana mora em um povoado do município de Araci, interior da Bahia. Ela
precisa mostrar a um médico o eletrocardiograma que fez há quatro meses no hospital
da cidade. É uma caminhada de seis quilômetros com o sol a pino até o posto de
saúde mais perto de sua casa. Duas horas depois, quando chega ao posto, a
decepção de sempre: as fichas de atendimento tinham acabado.
Em Araci, quem cuida da gestão dos profissionais da saúde é uma
cooperativa médica.
O objetivo nesse tipo de contratação é evitar a burocracia e agilizar o
atendimento médico no país. Quando surge a necessidade de preencher uma vaga, a
cooperativa leva um profissional dela para ocupar o lugar. Sem isso, a
prefeitura teria que abrir um concurso. O que vamos mostrar nesta reportagem é
que o modelo tem falhas. E que muitas vezes elas começam a aparecer já na
assinatura dos contratos.
Durante duas semanas, o Fantástico ocupou duas salas de um prédio
comercial em Salvador. O repórter Eduardo Faustini se apresentou como um
representante de um grupo de prefeituras. Foi assim que ele recebeu diversas
propostas irregulares de cooperativas médicas e organizações que atuam na área
da saúde. Nenhum negócio foi fechado, mas todas as conversas foram gravadas por
câmeras e microfones escondidos.
Para fazer um contrato emergencial, não é preciso fazer concorrência
entre cooperativas. Basta convidar uma para assinar o acordo com o gestor
público. Isso abre um caminho que alguns usam para fraudar.
Claudia Gomes é diretora da Cooba, Cooperativa Baiana de Saúde,
contratada por sete municípios, inclusive Araci.
O repórter pede que a executiva tome por base um hospital com folha
salarial de R$ 500 mil e quer saber qual seria o valor total do contrato.
Cláudia soma a folha, os impostos e a taxa administrativa da cooperativa.
Claudia: O contrato seria no valor de R$ 735 mil: R$ 500 mil é de folha.
A gente paga a folha, o resto a gente paga de imposto e tem 7% da taxa administrativa.
E ela faz uma proposta ilegal: “Desse valor aqui, se você quiser, dá para
a gente botar 10% em cima de cada contrato”.
É como se fosse uma “taxa de indicação”. Em português claro, propina.
Claudia: 17%: 7% da cooperativa e 10% para a parte da pessoa que fizer a
indicação, tipo você, entendeu? Vamos fazer uma parceria minha e sua. Os
municípios que você indicar que a gente fechar, eu fico com a parte de 7% e
você com a parte de 10%.
Um contrato assinado em abril entre a prefeitura de Araci e a Cooba é de
R$ 4,25 milhões.
Visitamos os sete postos de saúde da família instalados nos povoados da
zona rural de Araci.
No povoado de João Vieira, segundo a cooperativa, tem um médico
trabalhando 40 horas por semana. Mas a sala de atendimento está vazia, não há
ninguém no consultório do médico – nem atendente, nem enfermeiro.
A cem quilômetros de Araci, reencontramos Cláudia Gomes, que não quis dar
entrevista. O marido dela, Alessandro Queiroz, é o presidente da cooperativa.
Repórter: A cooperativa não paga comissão, nem propina nenhuma?
Alessandro: Não, de forma alguma, isso não existe.
Alessandro: Não, de forma alguma, isso não existe.
Damiana teve uma crise de hipertensão quando estava no posto e, só por
isso, acabou sendo atendida pelo médico. A boa notícia é que os exames dela
estão ok.
Fraude na saúde
As cooperativas contratadas pelas prefeituras para fazer a gestão da saúde
pública não podem ter fins lucrativos. É o que a lei diz, mas no Brasil real…
Mário Luciano Rocha é diretor da Coopersaúde, que atua em 15 municípios
da Bahia.
O repórter diz a Luciano que dispõe de R$ 750 mil mensais para a gestão
de um hospital de porte médio. O diretor da cooperativa diz que dá para gastar
menos e embolsar a diferença.
Luciano: A gente sabe que dá para tocar isso com uns R$ 500 mil. Essa
diferença você tem uma parte, dividiria com a gente uma parte da rentabilidade.
O repórter pergunta, então, sobre a prestação de contas com a Receita
Federal.
Repórter: Como é que fica essa questão fiscal de vocês? Isso é problema
de vocês, né?
Luciano: É nosso. Se incomode não que a gente tem mecanismo em relação a isso, empresas e tal.
Luciano: É nosso. Se incomode não que a gente tem mecanismo em relação a isso, empresas e tal.
E o executivo garante que a propina chega ao gestor público 48 horas
depois de a cooperativa receber a verba prevista em contrato.
Luciano: Em 48 horas, 72 horas.
Repórter: E como seria esse repasse?
Luciano: Cash.
Repórter: E como seria esse repasse?
Luciano: Cash.
O Fantástico foi ao município de Candeias, onde o atendimento é
administrado pela Coopersaúde. Conhecemos Jaqueline e Josenilton. A filha deles
está doente. Nós marcamos o tempo da consulta da filha de Jaqueline e
Josenilton: três minutos e meio.
Mãe: Demorou para chamar, para atender. E quando atendeu, foi rápido.
Repórter: Uma consulta que dura 3 minutos e meio de uma criança pode ser considerada completa?
Marambaia: De jeito nenhum.
Repórter: Uma consulta que dura 3 minutos e meio de uma criança pode ser considerada completa?
Marambaia: De jeito nenhum.
A afirmação é de quem há 37 anos exerce a medicina como manda o código da
profissão.
“O pediatra é um herói, porque ele consegue discernir através do choro e
do muxoxo da criança o que muitos médicos não conseguem fazer”, destaca o
especialista Otávio Marambaia.
No escritório de salvador, o diretor da Coopersaúde explica que os
médicos da cooperativa ganham por consulta.
Luciano: Cada consulta, são R$ 25. Se ele vai atender 40 ou vai atender
80, é só multiplicar o número pelo valor da consulta.
Mas o presidente da Coopersaúde, Paulo Rocha, nega que pague aos médicos
da cooperativa de acordo com o número de atendimentos.
Consultas a jato
Consultas a jato, em muito menos tempo do que seria necessário, são um problema
que os repórteres do Fantástico encontraram também no estado de São Paulo.
Mãe e filha entram no consultório na região metropolitana de São Paulo e
deixam a sala 1 minuto e 23 segundos depois.
Na ortopedia, é a mesma coisa. Uma paciente entra no consultório. No lado
de fora, Leonilda espera de pé a vez de ser atendida. Ela se queixa de dor na
mão direita, que está sem os movimentos normais. Apenas 2 minutos e 44 segundos
depois, a porta se abre, fim da primeira consulta. Chega a vez de Leonilda.
O médico olha para a mão de Leonilda enquanto ela explica o problema que
a levou até ali. Ele não toca na paciente. Apenas aponta com a caneta e diz
alguma coisa. Foram 12 segundos. Durante apenas 12 segundos, o médico olhou
para a paciente e só para a mão dela. Outros 52 segundos, ele usou escrevendo
no receituário. Leonilda esperou em pé. Tempo total da consulta: 1 minuto e 4
segundos.
“Saber quem é você, de onde você veio, fatores que lhe pioram, melhoram,
o que você já fez para tratar aquela doença. Eu só posso descobrir isso
conversando com você. Se chega uma pessoa com queixa de uma articulação, um
minuto convenhamos, é quase divino, é quase uma vara de condão. Isso não é
medicina”, alerta Marambaia.
Cooperativas
Clandestinas
As cooperativas podem ter em seus quadros apenas profissionais de saúde. Quando
uma prefeitura precisa de profissionais de apoio ou de equipamentos, deve
procurar as organizações sociais – as OSS – que também não podem ter fins
lucrativos.
O repórter Eduardo Faustini, que se passa por representante de
prefeituras, recebe o presidente e a diretora de outra grande cooperativa da
Bahia, a Coopermed.
Juciara: 60% do efetivo médico da secretaria do estado é nosso.
Repórter: Qual estado?
Juciara: Bahia.
Repórter: Qual estado?
Juciara: Bahia.
Nesse encontro, o repórter diz que precisa terceirizar a gestão plena dos
municípios que ele estaria representando. A proposta não poderia ser aceita por
uma cooperativa. Para garantir o acordo, a Coopermed revela que pode fornecer
uma OS.
Juciara: Enquanto Coopermed, nós teremos disponibilizado pra você mão de
obra médica. Quando você abriu aí a informação que você está procurando
parceiros, inclusive se for na gestão com um todo, de unidade de saúde, nós
temos uma irmã e nós fazemos parte, a Coopermed, que é a Fundação Casa do
Médico.
No segundo encontro, apenas a executiva vai ao escritório e revela que
trabalha na cooperativa e também na organização social.
Juciara: Eu sou Juciara, executiva de negócio deles.
Repórter: Da fundação?
Juciara: Da fundação.
Repórter: Da fundação?
Juciara: Da fundação.
Para conseguir o contrato, Juciara garante que o presidente da fundação
não vai se opor ao pagamento de propina.
Juciara: Para a gente ter acesso a essas prefeituras tem alguém nos
bastidores fazendo isso pela gente. E isso tem um preço, isso tem um custo.
Repórter: Mas é difícil para ele entender isso?
Juciara: Não. Eles são empresários da saúde. Eles são donos de hospitais, de clínicas. São empresários da saúde.
Repórter: Mas é difícil para ele entender isso?
Juciara: Não. Eles são empresários da saúde. Eles são donos de hospitais, de clínicas. São empresários da saúde.
Entrevistado depois das gravações com câmera escondida feitas no
escritório, o presidente da Coopermed negou que a cooperativa atue em parceria
com uma organização social.“Não tivemos até o momento nenhuma vinculação com
qualquer organização social”, disse.
Mostramos três cooperativas registradas no Conselho Regional de Medicina.
Mas há também aquelas que não têm nem mesmo o registro exigido por lei. Um
médico já trabalhou para cooperativas clandestinas.
Médico: Já recebi cheque de posto de gasolina.
Repórter: Não era cheque da cooperativa?
Médico: Não.
Repórter: Não era cheque da cooperativa?
Médico: Não.
A Cooperlife não tem autorização para atuar.
Repórter: Vocês só atuam nos municípios que não exigem o registro do
conselho?
Secetário: E são vários municípios que não exigem, entendeu?
Secetário: E são vários municípios que não exigem, entendeu?
Manoel Vitorino, na Bahia, é um dos 21 municípios onde a gestão da saúde
é da Cooperlife.
Carmen é a zeladora do posto de saúde da cidade. Tem salário pago pela
Cooperlife de R$ 435. Por lei, nenhum trabalhador pode ganhar menos de um
salário-mínimo.
“Não tem outro emprego, se eu for ficar em casa eu vou viver de quê?”,
ela diz.
A Pró-Saúde, do empresário Marco Polo, é outra cooperativa sem registro
no Conselho de Medicina.
Repórter: Eu queria falar com o doutor Marco Polo.
Mulher no interfone: Não está. Estão viajando para Salvador.
Mulher no interfone: Não está. Estão viajando para Salvador.
O município de Tremedal, também na Bahia, tem contrato com a Pró-Saúde,
ou melhor, tinha.
Repórter: Se eu lhe disser, prefeito, que essa associação não tem
registro no conselho regional?
Prefeito Márcio Ferraz: Eu vou providenciar para ser apurado e ser punido. Se está errado, a primeira coisa a se fazer é cancelar o contrato.
Prefeito Márcio Ferraz: Eu vou providenciar para ser apurado e ser punido. Se está errado, a primeira coisa a se fazer é cancelar o contrato.
No dia seguinte, o prefeito de Tremedal chamou a nossa reportagem e
rescindiu o contrato.
Repórter: A prefeitura não vai mais atuar com essa cooperativa.
Prefeito: Não. A partir de hoje, não.
Prefeito: Não. A partir de hoje, não.
O Ministério da Saúde prevê a suspensão dos recursos quando a fraude fica
comprovada.
“O papel do Ministério da Saúde no caso das gestões municipais é um papel
de monitoramento, fiscalização e eventualmente de suspensão de recursos quando
se constata desvios ou malversação de recursos. É inadmissível que os recursos
que sejam transferidos pelo Ministério da Saúde possibilitem essas questões que
vocês estão levantando nesta matéria”, alerta Fausto Pereira dos Santos.